Publiquei, há uns anos, um textozinho, num volume sobre Evoramonte, intitulado "Um Castelo de Histórias" (organizado pelo meu amigo João Ruas). Esse texto, além de homenagear esse lugar mágico que é Evoramonte, tinha como subtítulo: Um Ensaio de Ego-Arqueologia.
Meio poético, meio "científico", esse texto tinha, como guião, a questão simples: porque é que alguém decide ser arqueólogo?
A propósito de, no contexto Covid 19, ter sido cancelada a Festa da Senhora da Boa Nova, que o povo designava como a Festa dos Prazeres, em Terena, fui buscar ao baú da memória outros elementos dessa estratigrafia.
Fig. 1 - Capela-fortaleza da Sra da Boa Nova, nos arredores de Terena
Era à volta da capela que, tradicionalmente, as famílias se reuniam, depois da procissão, para partilhar o farnel, debaixo das azinheiras, sobre as ervas frescas dos campos primaveris.
A data dos Prazeres é variável, em função da Lua de Primavera (a 1ª Lua Cheia, depois do Equinócio); em 2020, é na próxima segunda-feira, dia 20 de Abril.
Na minha infância, dos 7 aos 10 anos, morei, temporariamente, nos Montes do Touril e de Barrancos, concelho do Alandroal.
Tenho uma memória muito nítida de ter ido, com o meu pai e a minha tia Fátima, a pé, do Monte de Barrancos até à Capela da Boa Nova, à Festa dos Prazeres. Eram bem uns 10 Km, mas ninguém se queixou. O caminho passava pelo santuário de Endovélico, mas, nessa altura, eu ainda não sabia nada desses mistérios.
E fiquei fã da Festa dos Prazeres: Primavera, papoilas, grilos, concertinas, gaitas, cantorias, bailaricos, namoricos. Comes e bebes. Vinhito ou pirolito.
Parece que foi noutro milénio.
A Escola Primária era num outro Monte (a Malhada Alta), a uma légua (c. 5 Km) de onde eu morava.
Fig. 2 - Locais e trajetos referidos no texto
Fig. 3 - Vista do Vale do Lucefecit, com o Alandroal ao fundo.
Fig. 4 - A Escola Primária da Malhada Alta, desactivada há muitos anos. Tinha só uma professora e só uma sala para os alunos da 1ª à 4ª classses. Sem separação por sexos...nem por classes.
Eu adorava o caminho para a Escola e, ainda mais, o do regresso. Sozinhito.
(Entre parênteses, uma muito sentida homenagem à professora D. Marianita, uma alma enorme, uma raridade. Um dia hei-de falar dela).
Pássaros, grilos, borboletas, lacraus e por aí adiante, não faltavam para me fazerem companhia.
Que bem que se está no campo.
No trajecto diário para a Escola, passava pela Capela da Fonte Santa, onde fiz a primeira comunhão e onde, de vez em quando, volto porque gosto. Da água e do resto.
Passava também pelo Moinho da Fonte Santa, onde, mais tarde, conheci o Mike Biberstein, artista plástico que reconheceu e se encantou pelo carácter intenso desta paisagem, a que alguns (Ana Paula Fitas, Manuel Lapão) chamaram o Vale Sagrado do Lucefecit.
O Rio da minha aldeia.
Fig. 5 - Fonte e Capela da Senhora da Fonte Santa
Fig. 6 - Moinho da Fonte Santa, onde resisdiu e trabalhou, durante décadas, o pintor suiço Mike Biberstein que foi, desde a descoberta do sítio, até à sua morte, um seguidor atento da Rocha da Mina (nos últimos 10 anos escavada por Rui Mataloto e Conceição Roque).
Para concluir:
Não sei se a vivência destes trajetos, lá longe na infância, teve ou não impacte na minha atração pela arqueologia, numa perspectiva muito focada na paisagem...
Quando, em 1992, estava a concluir os trabalhos de campo para a Carta Arqueológica do Alandroal, deparei com esse sítio fantástico, a Rocha da Mina, que veio, por tudo e mais alguma coisa, a ser escolhido para a capa da publicação.
Bem ao lado de onde eu passava diariamente, mais atento aos grilos do que aos cacos...
Fig. 7 - Os degraus da Rocha da Mina
Fig. 8 - Capa da velha Carta Arqueológica do Alandroal (1993)