Friday, April 17, 2020

Fonte Santa e os Prazeres


Publiquei, há uns anos, um textozinho, num volume sobre Evoramonte, intitulado "Um Castelo de Histórias" (organizado pelo meu amigo João Ruas). Esse texto, além de homenagear esse lugar mágico que é Evoramonte, tinha como subtítulo: Um Ensaio de Ego-Arqueologia. 
Meio poético, meio "científico", esse texto tinha, como guião, a questão simples: porque é que alguém decide ser arqueólogo? 

A propósito de, no contexto Covid 19, ter sido cancelada a Festa da Senhora da Boa Nova, que o povo designava como a Festa dos Prazeres, em Terena, fui buscar ao baú da memória outros elementos dessa estratigrafia.


Fig. 1 - Capela-fortaleza da Sra da Boa Nova, nos arredores de Terena

Era à volta da capela que, tradicionalmente, as famílias se reuniam, depois da procissão, para partilhar o farnel, debaixo das azinheiras, sobre as ervas frescas dos campos primaveris. 
A data dos Prazeres é variável, em função da Lua de Primavera (a 1ª Lua Cheia, depois do Equinócio); em 2020, é na próxima segunda-feira, dia 20 de Abril.

Na minha infância, dos 7  aos 10 anos, morei, temporariamente, nos Montes do Touril e de Barrancos, concelho do Alandroal. 
Tenho uma memória muito nítida de ter ido, com o meu pai e a minha tia Fátima, a pé, do Monte de Barrancos até à Capela da Boa Nova, à Festa dos Prazeres. Eram bem uns 10 Km, mas ninguém se queixou. O caminho passava pelo santuário de Endovélico, mas, nessa altura, eu ainda não sabia nada desses mistérios. 
E fiquei  fã da Festa dos Prazeres: Primavera, papoilas, grilos, concertinas, gaitas, cantorias, bailaricos, namoricos. Comes e bebes. Vinhito ou pirolito.

Parece que foi noutro milénio.

A Escola Primária era num outro Monte (a Malhada Alta), a uma légua (c. 5 Km) de onde eu morava. 

Fig. 2 - Locais e trajetos referidos no texto

Fig. 3 - Vista do Vale do Lucefecit, com o Alandroal ao fundo.

Fig. 4 - A Escola Primária da Malhada Alta, desactivada há muitos anos. Tinha só uma professora e só uma sala para os alunos da 1ª à 4ª classses. Sem separação por sexos...nem por classes.


Eu adorava o caminho para a Escola e, ainda mais, o do regresso. Sozinhito. 
(Entre parênteses, uma muito sentida homenagem à professora D. Marianita, uma alma enorme, uma raridade. Um dia hei-de falar dela). 
Pássaros, grilos, borboletas, lacraus e por aí adiante, não faltavam para me fazerem companhia. 
Que bem que se está no campo. 
No trajecto diário para a Escola, passava pela Capela da Fonte Santa, onde fiz a primeira comunhão e onde, de vez em quando, volto porque gosto. Da água e do resto.
Passava também pelo Moinho da Fonte Santa, onde, mais tarde, conheci o Mike Biberstein, artista plástico que reconheceu e se encantou pelo carácter intenso desta paisagem, a que alguns (Ana Paula Fitas, Manuel Lapão) chamaram o Vale Sagrado do Lucefecit.
O Rio da minha aldeia.

Fig. 5 - Fonte e Capela da Senhora da Fonte Santa


Fig. 6 - Moinho da Fonte Santa, onde resisdiu e trabalhou, durante décadas, o pintor suiço  Mike Biberstein que foi, desde a descoberta do sítio, até à sua morte, um seguidor atento da Rocha da Mina (nos últimos 10 anos escavada por Rui Mataloto e Conceição Roque).

Para concluir:

Não sei se a vivência destes trajetos, lá longe na infância, teve ou não impacte na minha atração pela arqueologia, numa perspectiva muito focada na paisagem...
Quando, em 1992, estava a concluir os trabalhos de  campo para a Carta Arqueológica do Alandroal, deparei com esse sítio fantástico, a Rocha da Mina, que veio, por tudo e mais alguma coisa, a ser escolhido para a capa da publicação. 
Bem ao lado de onde eu passava diariamente, mais atento aos grilos do que aos cacos...


Fig. 7 - Os degraus da Rocha da Mina

Fig. 8 - Capa da velha Carta Arqueológica do Alandroal (1993)



1 comment:

Fátima Oliveira Sequeira dos Remédios said...

Muito obrigada por esta delícia de texto, no qual me revejo tanto. Que forma doce e ternurenta de entrar neste fim de semana. Locais sagrados, misteriosos, que nos chamam... bem haja.